De nada adianta “protocolo de gênero”, se o desequilíbrio de poder só se agrava
A indicação de Jorge Messias para o STF e a promoção da juíza que condenou Schirlei Alves por fazer jornalismo em defesa das mulheres
Apesar dos discursos do governo federal em prol do equilíbrio de gênero e da participação das mulheres nos espaços de poder — bandeira levantada inclusive nesta COP de Belém —, o presidente Lula indicou ontem mais um homem, o advogado-geral da União, Jorge Messias, para a vaga deixada por Barroso no Supremo Tribunal Federal.
É a terceira oportunidade que Lula tem, neste mandato, de diminuir um pouco a desigualdade de gênero na mais alta Corte do país. Mas a situação só se agravou.
Em 2023, indicou Cristiano Zanin para a vaga deixada por Ricardo Lewandowski; meses depois, colocou Flávio Dino no lugar de Rosa Weber, efetivamente diminuindo o peso das mulheres no STF. Hoje, Cármen Lúcia, indicada pelo próprio Lula em 2006, está sozinha, dividindo o tribunal com dez homens.
Pior: o presidente assinou a indicação de Messias no Dia da Consciência Negra, em meio a um movimento que há tempos demanda, com razão, a nomeação de uma jurista negra para o STF, em nome da representação efetiva da diversidade que há no Brasil.
Jorge Messias, indicado ao STF, e o presidente Lula. Foto: Ricardo Stuckert/PR
O advogado e professor Paulo Iotti, diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), chamou a atitude de Lula de “escárnio doloso”. Numa rede social, escreveu que a indicação, neste feriado, “é uma provocação barata, de dolo direto e puro escárnio”, e que podia, ao menos, ter esperado a segunda-feira.
O Judiciário no Brasil tem um protocolo de “perspectiva de gênero”, criado em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para orientar magistrados e magistradas a considerar “as desigualdades estruturais que afetam mulheres” em suas decisões.
Mas quem acredita que isso seja aplicado na prática, se ainda vivemos num país em que o poder, de fato, está majoritariamente nas mãos de homens brancos? Em que meninas e mulheres vítimas de violência são constantemente revitimizadas, humilhadas e desacreditadas nas delegacias e nos tribunais?
Ah, sim, temos uma lei para coibir isso. (Eu sempre digo: não faltam leis de proteção às mulheres no Brasil, mas falta, sim, aplicá-las)
A Lei Mariana Ferrer, sancionada em 2021, foi feita “para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo”.
Mas olha como o curso das coisas é curioso: essa lei foi elaborada e aprovada graças à denúncia feita por uma jornalista, Schirlei Alves, que expôs, no Intercept, as humilhações a que Mariana Ferrer, que denunciou um estupro, foi submetida no tribunal.
O acusado pelo estupro foi absolvido; o juiz Rudson Marcos, que permitiu a tortura a Mari Ferrer na tribuna, foi advertido formalmente pelo CNJ. Mesmo com o reconhecimento, por parte do governo federal e da Justiça, das violações que Ferrer sofreu, a única condenada na história toda, pasmem, foi a jornalista que deu voz a ela.
Em novembro de 2023, a repórter Schirlei Alves recebeu uma sentença de um ano de prisão em regime aberto e R$ 400 mil em indenizações ao promotor Thiago Carriço e ao juiz Rudson Marcos, do TJ-SC.
Uma juíza da 5ª Vara Criminal da Comarca de Florianópolis considerou que a repórter cometeu o crime de difamação contra funcionário público, em uma decisão considerada arbitrária e desproporcional por órgãos da imprensa e instituições de defesa do jornalismo. Alves recorre da decisão, e aguarda parecer da segunda instância, no mesmo tribunal de Santa Catarina do juiz que a processa.
Em texto no Intercept, a jornalista Cecília Olliveira escreveu: “A condenação de Schirlei, proferida pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, lembra a época da ditadura e é totalmente infundada, repleta de falhas processuais e extremamente desproporcional. Studer foi a única juíza disposta a aceitar o caso apresentado por seus colegas na vara, depois que muitos outros se recusaram devido ao conflito aparente. Nossas moções para transferir o caso para um fórum neutro foram negadas”.
Sabe o que aconteceu dois anos depois dessa decisão contra a jornalista e o jornalismo?
Andrea Cristina Rodrigues Studer foi nomeada desembargadora no TJ-SC. Como a ironia não tem fim, ela foi promovida “por merecimento”, em vaga exclusiva para mulheres (!), de acordo com resolução do CNJ que estabelece paridade de gênero nos tribunais.
Pra gente lembrar que nem sempre é suficiente que mulheres tenham acesso aos cargos de poder. Muitas delas jogam o jogo do patriarcado para chegar lá.
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Prima Facie, peça de Suzie Miller, protagonizada no Brasil por Débora Falabella e dirigida por Yara de Novaes
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“Silenciadas”, minha audiossérie disponível na Audible e no site da revista piauí: o terceiro episódio traz mais detalhes sobre o caso Mari Ferrer e uma entrevista com Schirlei Alves


Acabei de ouvir o quarto episodio da série Silenciadas e dar de cara com a ambas as notícias foi como engolir cacos de vidro. A indignação me rasga. “Pra gente lembrar que nem sempre é suficiente que mulheres tenham acesso aos cargos de poder. Muitas delas jogam o jogo do patriarcado para chegar lá. “ Esse final resume tudo.
Estou adorando ler seus textos. É revoltante o quanto ainda precisamos lutar.